Itaan Arruda
O que vai ser relatado aconteceu pelas bandas do Icuriã. Faz
tempo, ó. Foi uma época esquisita. Dizem que a comunidade estava muito
populosa. Gente demais. Era preciso organização. Tudo estava complicado:
faltava água; esgoto passando na frente dos casebres; escola com professor
semi-analfabeto; sem uma benzedeira decente para sarar feridas e aliviar
encostos. Até um crime aconteceu, com promessa de revanche por parte da família
do Pinté. Ninguém esperava por Governo que, até aquele momento, poucas vezes tinha
aparecido por lá. Para espanto de alguns que ironizavam. “Aqui é tão espatifado
que, mesmo sem Governo, a gente não consegue dar ordem às coisas”. Ao que
alguém sentenciou. “Era preciso organização”, lembra um dos primeiros
“governadores” do local, o líder Antônio Calça Curta em entrevista a uma jovem
historiadora. “Era preciso fazer política”.
Mas, fazer política sem
Governo, pra quê? Isso lá tem sentido? O governo estava ausente da Vila Icuriã.
A essas indagações, Calça Curta respondia como quem honra o bigode que não
tinha. “Eu quero cuidar desse povo”, prometia. “Ponho minha vida nisso”. De fato,
Antônio Calça Curta melhorou a vida de muitos. Não de todos, que não está aqui
se falando de um deus. Mas, a vida melhorou. Era fato.
Mandou buscar canos do
quartel do Exército na Vila Assis Brasil e botou água limpa dentro; criou uma
canalização para jogar esgoto longe das cabaceiras do rio. Até um boticário
mandou trazer da capital.
“Pra evitar ‘barriga’ em
menino novo”. Antônio Calça Curta conquistou o povo do Icuriã. Veio até um
retratista da capital acompanhado de um doutor das letras para fazer reportagem
esticada-elogio-sa no periódico oficial. Era um novo fenômeno: moço, bem
apessoado, sorriso fácil, trato gentil. Mas, contrariasse o diabo do homem que
os beiços vinham pelas canelas. Era um lundum horrível. “Eu tinha que ser
daquele jeito”, recorda Calça Curta, agora já velho. “Se não fosse do meu
jeito, seria do jeito de quem? Ali na vila, depois de mim só tinha bicho e
mato. Alguém tinha que decidir as coisas. E eu decidi que tinha que ser eu”,
disse, quase em tom de saudade.
Com a popularidade de Calça
Curta em alta, uma esquisitice começou a acontecer na região. De repente, os
desafetos naturais que um homem opinioso constrói ao longo da vida
desapareceram. Tudo no vilarejo passou a ter uma tranquilidade incomum. O
“governador” da Vila Icuriã passou a contar com uma cordialidade consensual.
Não havia embate.
A política praticada por
Calça Curta era a política do consenso. Tudo tinha que ser por consenso. Ou era
unanimidade, ou não valia. De uma hora para outra, a Vila do Icuriã ficou
conhecida como a “referência regional”. A Vila era “modelo para isso”; “modelo
praquilo”. Calça Curta se justifica para a estudante. “Mas, minha filha, não
éramos nós quem falávamos. Eram os homens do governo que a partir daquele
momento, não saiam de lá”.
De alegria em alegria, a Vila
Icuriã foi definhando. Descobriu-se que as mudanças implantadas por Calça Curta
endividaram de tal monta a comunidade que não havia dinheiro que pagasse. Muita
gente começou a fugir subindo os descendo o rio. Em menos de um mês, quase a
Vila se transforma em um lugar fantasma. Uma tristeza medonha se enraizou. Só
Calça Curta ficou por lá. Buscou guarita em Assis Brasil depois que um grupo de
peruanos saqueou o que restava de valor. Orgulhoso, Calça Curta deu um muxoxo
subindo o barranco. “Gente ingrata. Não sabe reconhecer quem sempre deu a vida
por esse lugar”.
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